Crises miltonianas, democracia e o chá das cinco

As diversas tessituras que compõem o pensamento de Milton Santos nos mostram que a principal função do intelectual é estar permanentemente em busca de um porvir. E um porvir que seja esboçado e transformado a partir de um viés crítico e não por processos de clivagens. Clivagens, como o próprio Milton Santos adverte, de grupos e políticas que reduzem a universidade a um campo provinciano, carregado de afilhamentos em defesa da instrumentalização dita democrática. “Essas clivagens reduzem o trânsito das pessoas e das idéias”, sentencia Milton Santos. E o uso abusivo da palavra democracia é soerguido como uma forma de validação das condutas verticalizantes de um micro-poder. A prática desse “fundamentalismo democrático”, para usar a expressão lapidada por Gabriel Garcia Márquez, oblitera as idéias que desviam dos prévios acordos, das prévias negociações, das prévias sondagens.

No contraponto desses direcionamentos verticalizantes, as “jornadas de estudos” realizadas no IHAC nos dias 30 de junho e 14 de julho, como proposição do então diretor em exercício Prof. Sérgio Farias, desvelam caminhos ricos e significantes para um saber-fazer democrático. Onde o regime democrático escapa das “formas incipientes de autocracia eletiva” e se estrutura como um modelo que permite ações propositivas fundamentais para a criação do novo. Se o que se deseja é estar atento às “crises de transformação e renovação” é preciso dar valência e continuidade a essas “jornadas de estudos”. Ressalte-se também a condução do Prof. Sérgio Farias, que com seu comportamento, soube muito propor e ouvir. Soube observar a necessidade de uma estrutura que abrigasse tão variadas temáticas. E assim discutimos, criticamos, dialogamos sobre temas diversos: política pedagógica, infraestrutura do IHAC, esgotamento do modelo disciplinar, processos de avaliação, entre outros. Infelizmente a segunda jornada, que deveria acontecer novamente em dois turnos, foi interrompida por “um compromisso às 17h” que convocava alguns professores e outros não. Tornou-se evidente o constrangimento de retirada para o então “chá das cinco”.

Todos sabemos, ou pelo menos deveríamos saber, que o “chá das cincos”, como reza os costumes, desde que foi lançado pela Duquesa de Bedford na Inglaterra do início do sec. XIX, foi criado para instruir as regras de etiqueta. Em alusão a este mecanismo de conduta secular, nas suas versões mais contemporâneas e “acadêmicas”, o “chá das cinco” servido recentemente na FACOM e que interrompeu a importante jornada de estudos do IHAC, mostra-se como uma atividade nociva ao vir-a-ser do próprio instituto. Entre as iguarias servidas na convocação excludente do “chá das cinco” estão no top-list os financiers e os croque-monsieur, no intuito de agregar consensos e majorações eletivas. A noção antidemocrática delineia-se por estruturas demagógicas como o “chá das cinco” na FACOM, que instrumentaliza o retorno, que afirma o centralismo e a ação verticalizante da duquesa. No “chá das cinco” há uma missão que busca o conjunto de “pessoalidades” seduzidas pelas iguarias e que, como nos ensina Milton Santos, segue “um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada”.

Iguarias e pessoalidades a parte, prefiro o abrigo das proposições e dos direcionamentos realizados na “jornada de estudos”, que tocam em questões fundantes para o desenvolvimento crítico do IHAC. Dessa forma, vislumbrou-se e discutiu-se a inadequação do termo MIT e que serviu para a proposição do seminário sobre o esgotamento do modelo disciplinar, com comissão já formada, a ser realizado no próximo semestre no IHAC. Como outro traço das diretrizes dialogadas na jornada se colocou em evidência a necessidade de criação de uma pós-graduação que nasça das entranhas do IHAC, que não seja transladada das sedimentações e formações anteriores, sendo ela discutida, reformulada, apreciada pelo corpo docente do IHAC em tempos moderados, para que sirva como um impulso de transformações e abrigo das pesquisas interdisciplinares. E como antecipação para visualizar as possíveis relações entre as pesquisas e os desejos de pesquisa que também reflitam sobre as interdisciplinaridades, as oficinas de pesquisa, outro ganho dos direcionamentos da “jornada de estudos”, serão também realizadas em um futuro breve pelo GT de pesquisa. Creio que os direcionamentos e as propostas estruturantes concretizadas na jornada de estudos, através do diálogo franco e sem instrumentalizações a partir do “voto democrático”, nos mostre caminhos para um devir diferenciado.

Deixe um comentário