travessa dos perdões – fragmento I

15/07/2010

Os 400 golpes do IHAC

26/10/2009

doinel2

 

Os 400 componentes curriculares oferecidos pela UFBA ao IHAC, no semestre de 2009.2, no intuito de vetorizar discursos mit-disciplinares (sic), produzem um grande oceano das semelhanças e servem para refletir o quão fragilizados se mostram os projetos pedagógicos de cada bacharelado interdisciplinar. Antes de se discutir as lacunas apontadas pela Câmara de Graduação, que mostram, em parte, os deslizes de cada tessitura, os projetos dos BIs foram inundados por uma poderosa tormenta. Esta grande agitação provocada pela “generosa” oferta dos componentes curriculares é fruto da necessidade do próprio IHAC em proclamar-se diferente e de precisar publicizar suas enunciações.

 

Os alunos do IHAC poderiam representar muito bem o papel de Antoine Doinel, personagem autobiográfico de François Truffaut, em Les quatre cents coups. Eles estão aptos a encenar os ligeiros passos finais que esboçam, diante a tantas veredas disciplinadas imposta à trama, o percurso para a descoberta primeva do mar. Porém, por mais que se imagine que o horizonte que se desvela produzirá uma prazerosa sensação de liberdade, esta marcação vetorizada do oceano os forçará inevitavelmente a um retorno às evidências do mundo real: é preciso defrontar-se com os limites entre o que se busca e o que se é ofertado.

 

Estas precipitações se repetem, de forma indiferenciada, em cada “aprovação” da congregação do IHAC que imediatamente é midiatizada para fazer valer a voz imperial de um projeto. Entre os 400 golpes curriculares oferecidos em prol da liberdade de escolha de cada Antoine Doinel matriculado no IHAC, se desenha suas desastrosas implicações futuras, seus recortes disciplinados sem liga, suas tramas malfazejas. A tão sonhada liberdade em prol de “novas” e inusitadas formações, produz-se a partir da prisão vetorial, fruto de um projeto pedagógico deficitário. A mega-oferta dos componentes curriculares, como se fossem gotas artificiais que compõem este confuso oceano, torna-se também responsável por produzir a grande evasão, a olhos vistos, dos alunos do IHAC.

fidelidade e endogenia universitária

30/08/2009

No fim da década de noventa, precisamente em 1997, Milton Santos reflete, em entrevista ao jornal O Tempo, sobre os processos da endogenia universitária, onde a rede de compromissos e a troca de amabilidades entre os partners permanentes, reduz consideravelmente a vitalidade da vida acadêmica. O desejo de poder dos corpos dirigentes, no intuito de suas permanências duradouras, provoca a formação de uma socialidade particular, que esquadrinha a universidade em prol de um sutil jogo político.

Entre jogos e sutilezas, a universidade é esboçada nos arranjos e compromissos que são, como bem nos faz lembrar as palavras de Milton Santos, externos às atividades propriamente acadêmicas. Desde os processos de escolha do corpo docente às sondagens e distribuições dos cargos de mando, a vida acadêmica se concretiza nos chás, nos jantares, nas festas. E é nesse momento que a endogenia universitária veste o seu manto partidário, em detrimento da busca de uma socialidade que abrigue a crítica como formação e trabalho do intelectual. A missão intelectual, do professor e pesquisador, é subtraída pela fidelidade dos enturmamentos.

A fidelidade se realiza no silêncio e no pacto da mais valia universitária, fundamentalmente pautados pela instrumentalização do marketing institucional que pleiteia o novo como objeto de composição diferencial, no intuito de se tornar palatável ao público, ao mercado, à mídia e à própria carreira universitária. Porém, em meio a tantas crises que inundam as tessituras da universidade, é preciso perceber que a manutenção dos fiéis fidalgotes provoca apenas a repetição da mesmice articulada e extenua qualquer caráter de inovação. E é importante pensar, como nos mostra Milton Santos, que “a fidelidade reclamada não pode ser à universidade, e a ela não temos razão para ser fiéis. Nossa única fidelidade é com a idéia de universidade. E é a partir da idéia sempre renovada de universidade que julgamos as universidades concretas e sugerimos mudanças.” Enquanto perdurarem os sistemas de acordos tácitos, as ostentações dos corpos dirigentes, o cômodo fidelismo dos grupos acríticos, a universidade vai perdendo seu verdadeiro poder de transformação.

SANTOS, Milton. O geógrafo de campos e espaços. In O Tempo, setembro de 1997.

SANTOS, Milton. O intelectual e a universidade estagnada.

Crises miltonianas, democracia e o chá das cinco

30/08/2009

As diversas tessituras que compõem o pensamento de Milton Santos nos mostram que a principal função do intelectual é estar permanentemente em busca de um porvir. E um porvir que seja esboçado e transformado a partir de um viés crítico e não por processos de clivagens. Clivagens, como o próprio Milton Santos adverte, de grupos e políticas que reduzem a universidade a um campo provinciano, carregado de afilhamentos em defesa da instrumentalização dita democrática. “Essas clivagens reduzem o trânsito das pessoas e das idéias”, sentencia Milton Santos. E o uso abusivo da palavra democracia é soerguido como uma forma de validação das condutas verticalizantes de um micro-poder. A prática desse “fundamentalismo democrático”, para usar a expressão lapidada por Gabriel Garcia Márquez, oblitera as idéias que desviam dos prévios acordos, das prévias negociações, das prévias sondagens.

No contraponto desses direcionamentos verticalizantes, as “jornadas de estudos” realizadas no IHAC nos dias 30 de junho e 14 de julho, como proposição do então diretor em exercício Prof. Sérgio Farias, desvelam caminhos ricos e significantes para um saber-fazer democrático. Onde o regime democrático escapa das “formas incipientes de autocracia eletiva” e se estrutura como um modelo que permite ações propositivas fundamentais para a criação do novo. Se o que se deseja é estar atento às “crises de transformação e renovação” é preciso dar valência e continuidade a essas “jornadas de estudos”. Ressalte-se também a condução do Prof. Sérgio Farias, que com seu comportamento, soube muito propor e ouvir. Soube observar a necessidade de uma estrutura que abrigasse tão variadas temáticas. E assim discutimos, criticamos, dialogamos sobre temas diversos: política pedagógica, infraestrutura do IHAC, esgotamento do modelo disciplinar, processos de avaliação, entre outros. Infelizmente a segunda jornada, que deveria acontecer novamente em dois turnos, foi interrompida por “um compromisso às 17h” que convocava alguns professores e outros não. Tornou-se evidente o constrangimento de retirada para o então “chá das cinco”.

Todos sabemos, ou pelo menos deveríamos saber, que o “chá das cincos”, como reza os costumes, desde que foi lançado pela Duquesa de Bedford na Inglaterra do início do sec. XIX, foi criado para instruir as regras de etiqueta. Em alusão a este mecanismo de conduta secular, nas suas versões mais contemporâneas e “acadêmicas”, o “chá das cinco” servido recentemente na FACOM e que interrompeu a importante jornada de estudos do IHAC, mostra-se como uma atividade nociva ao vir-a-ser do próprio instituto. Entre as iguarias servidas na convocação excludente do “chá das cinco” estão no top-list os financiers e os croque-monsieur, no intuito de agregar consensos e majorações eletivas. A noção antidemocrática delineia-se por estruturas demagógicas como o “chá das cinco” na FACOM, que instrumentaliza o retorno, que afirma o centralismo e a ação verticalizante da duquesa. No “chá das cinco” há uma missão que busca o conjunto de “pessoalidades” seduzidas pelas iguarias e que, como nos ensina Milton Santos, segue “um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada”.

Iguarias e pessoalidades a parte, prefiro o abrigo das proposições e dos direcionamentos realizados na “jornada de estudos”, que tocam em questões fundantes para o desenvolvimento crítico do IHAC. Dessa forma, vislumbrou-se e discutiu-se a inadequação do termo MIT e que serviu para a proposição do seminário sobre o esgotamento do modelo disciplinar, com comissão já formada, a ser realizado no próximo semestre no IHAC. Como outro traço das diretrizes dialogadas na jornada se colocou em evidência a necessidade de criação de uma pós-graduação que nasça das entranhas do IHAC, que não seja transladada das sedimentações e formações anteriores, sendo ela discutida, reformulada, apreciada pelo corpo docente do IHAC em tempos moderados, para que sirva como um impulso de transformações e abrigo das pesquisas interdisciplinares. E como antecipação para visualizar as possíveis relações entre as pesquisas e os desejos de pesquisa que também reflitam sobre as interdisciplinaridades, as oficinas de pesquisa, outro ganho dos direcionamentos da “jornada de estudos”, serão também realizadas em um futuro breve pelo GT de pesquisa. Creio que os direcionamentos e as propostas estruturantes concretizadas na jornada de estudos, através do diálogo franco e sem instrumentalizações a partir do “voto democrático”, nos mostre caminhos para um devir diferenciado.

Crises miltonianas e interdisciplinaridade

30/08/2009

O IHAC, enquanto modelo de instituto que pleiteia transformações na universidade, está muito distante de experienciar os caminhos críticos que desvelem renovação e movimento das idéias em função de descobertas e propostas estruturantes para um devir diferenciado. Há um gigante abismo entre reforma e mudança revolucionária. Entre a publicidade do novo inventado e o novo que não se inventa. A ação revolucionária pressupõe percursos compositivos que abriguem a crítica como elemento fundante das aplicações, das tentativas de descoberta do novo. A reforma quase sempre se abriga em aparelhagens verticalizantes, que aguçam de tempos em tempos, suas sondagens, seus instrumentos midiáticos, suas engrenagens coercitivas com um sistema despótico que prescinde da crítica.

A busca por preocupações epistemológicas, que ajudem à compreensão da cena em crise, que ajudem a produzir um tecido rico e transformador para a universidade, encontra gigantescas limitações ao debate. Limitações que criam enormes obstáculos para o vir-a-ser do próprio IHAC-UFBA. Para que a prática pedagógica do IHAC desvele caminhos para experimentações de novas “arquiteturas curriculares” é preciso estar atento, em primeira instância, com suas falibilidades de compreensão epistemológica. Em Por uma geografia – Da crítica da Geografia a uma Geografia Crítica, Milton Santos nos alerta que “não há interdisciplinaridade que possa ser aplicada a uma colcha de retalhos” e que “(…) fazer progredir uma ciência particular não é privilégio dos seus próprios especialistas”. A interdisciplinaridade não é concretizada na ciranda, ou no rodízio, dos especialistas, mas sim na incorporação de um aparelho conceitual adequado, que exercite dentre as faculdades críticas, concepções filosóficas coerentes à imbricação entre as disciplinas. E isso, creio eu, está a léguas de distância do experimentado no IHAC. Legitimar a interdisciplinaridade como um jogo de rodízio de professores é evidenciar o quão frágil e deformada é esta compreensão.Há muito mais uma “interdisciplinaridade mercantil”, que contribui para regressões, por razões despóticas ou por incapacidade intelectual, do que uma construção epistemológica que antes compreenda a interdisciplinaridade e posteriormente a aplique.

Enquanto isso, a “tirania da informação”, para me apropriar novamente do pensamento miltoniano, faz valer os depoimentos que festejam o revezamento, que imaginam que buscaram a interdisciplinaridade (?) como mote que salvaguarda a experiência da troca; e dessa forma, avaliam positivamente o semestre do IHAC. O instrumento de comunicação oficial do IHAC não deve servir para a construção tendenciosa das informações. É preciso pedir licença para isso. Uma licença oficial que exponha a informação ao crivo crítico do corpo docente e que acolha, sem clivagens, os pensamentos que se diferenciam.

Seria muito bom se fossem provocadas na universidade “crises de transformação e renovação” ou “crises miltonianas” como Naomar de Almeida Filho as nomeou. Porém, parece que é preciso perceber que as teses de Pierre Bourdieu, que abrem o seu ensaio1 sobre a crise na universidade, nos chegam como ressonâncias afirmativas de um sistema que se perpetua. E por mais pessimista que seja, dentro da percepção da crítica do reitor da UFBA, Bourdieu nos evidencia as engrenagens de uma universidade que fazem funcionar o aparelho “politicamente apropriado”. Os caminhos abertos pelo pensamento de Milton Santos, caminhos críticos por excelência, não compactuam com o amorfismo intelectual verticalizante, despótico, legitimado e sem autorictas que impregna o IHAC.

1FILHO. Naomar. “Cinco teses sobre a crise…”. Folha de São Paulo, domingo, 5 de Julho de 2009.